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Sacrum Commercium S.Francisci cum domina Paupertat - Introdução

Ainda que não tenha nenhuma contribuição para a biografia de São Francisco, este é um dos livros mais bonitos e interessantes das Fontes Franciscanas. O Sacrum commercium beati Francici cum domina Paupertate é uma obra literária de original valor teológico. Expressa um dos primeiros pensamentos fundamentais franciscanos sobre seu papel na Igreja. 
Se nos baseássemos nas traduções italianas que vêm desde o sec. XIV, em que o livro aparece como "Mistiche nozze" apresentaríamos a tradução: "Núpcias místicas de São Francisco com a Senhora Pobreza". Mas isso não expressaria o conteúdo do livro. 
Commercium é um intercâmbio de mercadorias ou outros bens. Celano usa essa palavra em 1Cel 35, quando diz "Começaram a familiarizar-se (habere commercium) com a santa pobreza". Nossa tradução das Vozes diz: "iniciaram aí sua aliança". Em 2Cel 70, diz: "Há um trato (commercium ) entre o mundo e os frades". A palavra pode significar até relacionamento sexual, mas uma boa tradução seria "A Sagrada Aliança" porque a figura típica do livro é a aliança bíblica entre Deus e o seu povo. 
Sua autoria já foi atribuída a João Parenti, a Crescêncio de Iesi e a João de Parma, que foram ministros gerais. Também a Santo Antônio e a João de Peckham, bispo de York. Não se pode afirmar nada. 
Também lhe deram a data de 1227, anterior à 1Cel, mas, na realidade, deve ter sido escrito entre 1260 e 1270. Ficou conhecido por ser citado no Arbor Vitae Crucifixi Iesu, < de Clareno, e também por Dante, na Divina Comédia. 
É uma alegoria. Os frades buscam a Pobreza e chegam a encontrá-la numa montanha em que vive abandonada. Ela conta sua história desde a criação do mundo até Cristo, depois desde Cristo até as Ordens religiosas, então decadentes. Depois, deixa-se convencer a ir fazer um banquete com os frades e fica feliz de estar com Francisco e seus companheiros. Espécie de representação cênica ou de auto sacramental. 
Van Cornstanje começou a lê-la diferente, em 1964. Repassou, do ponto de vista teológico, as principais fontes franciscanas, dos escritos às legendas, procurando as passagens onde era mais evidente a ideia da aliança entre Deus e o povo dos pobres: os frades menores. 
Viu-se, assim, que temos uma alegoria teológica da opção franciscana pela pobreza. Esser retomou a ideia, em 1966, e desenvolveu o significado bíblico-teológico da obra na base da aliança salvífica. Desbonnets, em 1968, deixou claro que o autor não pode ser João de Parma e a data não pode ser 1227. 
Sete dos 14 manuscritos que trazem o texto dizem que ele foi terminado em julho de 1227. Mas todos dependem de dois mais antigos (só um dá a data), hoje perdidos. Os estudiosos hoje, em geral, não aceitam essa data. 
Ao ironizar o oratório, o claustro, a sala capitular, o refeitório, a cozinha, parece referir-se a um tempo posterior, porque os franciscanos começaram a viver uma vida de tipo claustral no tempo do ministro geral Haymo de Faversham (1240-44). 
Não parece referir-se a uma polêmica dentro da Ordem, com leituras diferentes sobre a pobreza proposta na Regra, mas a uma luta da Ordem com opositores externos. Isso o leva para a década de 50 ou 60 no sec. XIII, quando a Ordem foi atacada pelo clero secular, e especialmente pelos professores de Paris. 
No Sacrum Commercium, a Pobreza é esposa de Cristo. Francisco é um apaixonado por ela e a saúda como rainha das virtudes (cfr. 18, 23 e 64). 
De fato, São Francisco não vê a Pobreza como sua esposa e sim como sua Dama ou Senhora, nos termos feudais. Pelo menos é o que encontramos em seus escritos, na Vida I de Celano e nos textos de origem leonina. Foram a Vida II de Celano e a Legenda Maior que começaram a usar essa imagem (2Cel 55.72.82, LM 7,1), vinte anos depois de Francisco. 
O texto básico de Francisco sobre a pobreza é o Testamento. Nele, a pobreza é sempre concreta, não figurada: 1. Francisco se converte porque vai viver no meio dos leprosos; 2. os frades, antes de entrar, vendiam e davam tudo que tinham; 3. trabalhando com as próprias mãos, partilhavam a vida dos pobres. Para Francisco, a pobreza é uma virtude de Jesus Cristo: para ele, não é uma virtude, é um programa. 
No Sacrum Commercium, em vez, a perspectiva é teológica: 1. Francisco busca a pobreza porque foi a ela que Deus deu a chave do Reino dos Céus; 2. a pobreza aparece como uma virtude que, por si, não requer a participação na vida dos pobres (ver 5,4 "constituída rainha de todas as virtudes). 
Francisco dialoga com a Pobreza (5-6), desenvolvendo uma teologia absolutamente pauperista. A Pobreza fundamenta sua dignidade no fato de ser esposa de Cristo. Evoca episódios em que sempre foi companheira de Cristo. E Cristo a confirma quando sobe ao céu. 
A Pobreza reconstrói a história da salvação desde Adão através da história da fidelidade ou da traição do povo para com ela. Adão era o pobre por excelência, que até vivia sem roupa. Mas, na Igreja, o que importa é a pobreza comunitária, não apenas pessoal. 
O livro apresenta muitos juízos severos e mesmo temerários. Pressupõe uma teologia pauperista que, certamente foi vivida por Francisco, ainda que ele não a tenha expressado. 
A análise da Igreja a partir da pobreza é interessante, mas, será que Francisco teve esse "programa"? 
É interessante confrontar a alegoria do Sacrum Commercium com os fatos mais marcantes do encontro da Pobreza por parte de Francisco: com os leprosos, com os pobres, contando ao Papa a parábola da moça pobre do deserto e se identificando com ela, contando o sonho em que viu uma estatua belíssima de uma mulher vestida de trapos, encontrando no caminho três moças pobrezinhas que o saúdam como "Senhora Pobreza" (uma teofania feminina que lembra a visita dos três anjos a Abraão em Mambré) . 
J. Bórmida apresentou um interessante estudo do Sacrum Commercium em seus livros "La no propiedad" e "Eclesiologia Franciscana". 
Sem dúvida, os irmãos e irmãs de Francisco e Clara têm uma colaboração muito própria a dar no Povo de Deus.