FREI MATEUS DE BASCIO
Conhecemos muito pouco a figura de Mateus de Bascio. Esta crônica histórica, ou apontamentos para uma biografia, não pretende suprir lacunas e pesquisas. A passagem do autor, Flávio Gianessi, pela cidade de Bascio em companhia de outro frade e de um sacerdote diocesano, lhe oferece ocasião para apresentar a questão: Quem é frei Mateus de Bascio? Que lugar lhe cabe na história franciscana?
Acompanhemos a narrativa. Ela acrescentará alguns dados interessantes à história desse homem que já foi considerado fundador da nossa Ordem Capuchinha.
Premissa
O velho carro “cinquecento” de Dom Elígio rangia mais do que de costume, embora o meu peso e o de Frei Guilherme fossem um acréscimo insignificante se comparados aos seus cento e vinte e cinco quilos de “clero católico”, como costumava dizer de si mesmo. Descemos da igrejinha de Antico e, antes de subirmos a San Leo para a Festa do Perdão era dois de agosto o padre teve a fantasia e nos fazer visitar Bascio, onde havia nascido Frei Mateus, o primeiro capuchinho. Dele eu somente sabia que se “sabia pouco”; um reformador nos passos de Francisco, sobre o qual pairava a sombra da “traição”, por ter voltado, após alguns anos, para a Observância. Estava eu numa fase em que as cópias não me interessavam, ainda menos as mal feitas. Contudo, paramos na estrada provincial frente a igrejinha nova de Mulino de Bascio, e logo vimos uma grande estátua de pedra com o rosto voltado contra o muro, como os meninos quando são postos de castigo. Enquanto comentávamos isso, alguém se aproximou para nos explicar que “aquela, era uma nova estátua de Frei Mateus que devia ter sido colocada para além da estrada, mas a dona daquele terreno não queria, porque ela passava sempre por lá, de carro, e Frei Mateus estaria bem no meio. Não sei quem de nós tomou a iniciativa, mas o fato é que dois minutos depois estávamos todos a discutir com a dona. Falamos por um bom tempo, e a senhora nos deixou com um “veremos”, fraquinho. Após sete dias voltamos a passar por lá de novo e pudemos ver maravilhados que Mateus já estava posto para além da estrada. Como nicho ao longe um triângulo de rocha e como flores, ramos de plátano. Satisfeitos, nos olhamos de um jeito gozador, de quem tem consciência de ter feito algo importante: Frei Mateus estava no seu devido lugar. Mas,
na história?
1-Dizem que era mais bonito morto que em vida.
O rosto como que havia serenado: as rugas do pregador fogoso que mandava para o inferno ricos e pecadores, agora estavam distendidas e seu corpo que só vira água quando lhe chovia em cima, não somente não cheirava mal, mas para alguns até exalava certo perfume.
Um pouco antes pedira para se confessar. Chegava Frei Urbano Veneto, da Igreja dos Observantes de São Francisco da Vinha, e foi logo começando o interrogatório: Mas de que Ordem é você? Você não é mais capuchinho? Como então você está aqui, como hóspede do pároco de São Moisés? Por que você vive girovagando fora dos conventos? Frei Mateus, com dificuldades conseguiu responder que tinha a licença do Senhor Papa, subscrita por quatro Padres Gerais da Observância, e a mostrou. Assim, certo de que não estava frente um a um fugitivo ou apóstata, o frade decidiu confessá-lo. E assim morreu. Mas, se o pobre frade sem irmãos pensava que aquela seria sua última viagem, enganou-se.
Apenas expirava o pároco e os frades da Observância começaram a brigar pelo cadáver. O bispo interveio e entregou o corpo aos últimos, proibindo porém mais de uma vez que se exibisse sinais de culto. Para evitar confusão com pessoas, foi transportado à noite e sem lanternas. Alguém viu também os Capuchinhos que já estavam estabelecidos em um convento em Veneza, mas não parece que tenham apresentado nenhuma pretensão de tê-lo de volta, nem depois de morto: não convinha aos “filhos”, exatamente os Capuchinhos cultivar a memória de um “pai” que entendiam tê-los abandonado. No entanto era conveniente aos “pais”, os Observantes, honrar a memória de um “filho pródigo”, a quem era fácil fazer falar como morto, ter-se arrependido; tanto mais que apesar de tudo, parecia que fizesse milagres
2-O convento não lhe bastava
Que caminhos teriam levado Mateus, nascido em Bascio, na região do Montefeltro, morrer em Veneza, naquele sábado à tarde, vigília da Transfiguração, cinco de agosto de 1552, com a idade de cinqüenta e sete anos? Os historiadores e pesquisadores de arquivos ainda estão seguindo pistas, e tantas idas e voltas não cabem num pequeno artigo. Farei como nos desenhos em que se recompõe a figura seguindo os números, para somente no final tê-la revelada, através de um contorno aproximado. Seguirei os números, as datas mais aproximadas e seguras. Em 1523, com vinte e oito anos, torna-se sacerdote franciscano da Observância, ocasião em que vai para Camerino ajudar os empestados. No inverno de 1524, ao retornar ao convento de Montefalcone, vindo de um funeral, encontra-se com um pobre, entretém se com ele e lhe deixa um pedaço de lã de sua veste. Mas é este encontro que o deixa num sofrimento e depois numa amarga intolerância pela vida tradicional do convento. Até o hábito não lhe parecia mais o de São Francisco.
Numa noite do início de 1525, Ano Santo, adaptando o melhor que pôde um hábito, no que considerava mais próximo ao das origens, com um capuz não redondo mas em ponta, costurado à túnica, foge do convento e, talvez ajudado pela Duquesa de Camerino, sobrinha de Clemente VII, consegue ser recebido pelo Papa. Pediu-lhe permissão para viver a Regra de São Francisco à letra e andar pregando sem residência fixa, usando aquele hábito. O Papa lho concedeu, pedindo somente que se apresentasse cada ano ao capítulo dos frades, para prestar contas ao superior. E devia passar para retirar a permissão por escrito, porém, não voltou, porque talvez se tenha dado conta de que teria que apresentar à Cúria Romana a permissão por escrito, que não tinha.
Partiu para Montefeltro, e somente com licença oral começou a viver uma vida de pregador itinerante. Quando depois em abril se apresentou ao capítulo dos frades, viu-se diante das iras do Provincial, João de Fano que o trancou na prisão do convento de Forano. Ali permaneceu três meses antes que a Duquesa de Camerino fizesse chegar ao Padre Provincial a sua irritação, com uma carta neste tom: “Dou-lhe três dias para que me entregue libertado Frei Mateus de Bacio; do contrário sereis banidos das minhas terras e referirei à sua Santidade em que conta tem sua vontade. Faça como lhe disse e poupe-me de ter que ir além”. Assim, Mateus se encontra novamente livre para continuar sua vida. Dentro em pouco porém, põem-se a procurá-lo dois frades fugitivos da Observância que inutilmente haviam pedido “licença para levar vida pobre nos eremitérios”. São os dois irmãos, Ludovico, sacerdote e Rafael, leigo, filhos do Capitão Tenaglia de Fossombrone. Mesmo que Mateus logo lhes diga que não tem licença para “reunir companheiros” fica comprometido com eles e com outros que rapidamente se juntarão nas primeiras batalhas para obterem a liberdade de viver conforme a Regra.
É este o quadro rude, mas real, que o cronista nos oferece daqueles primeiríssimos meses: Frei Mateus vivia com Frei Paulo de Chioggia e também com um não bem definido Frei Próspero, e recorda que “tinham feito um refúgio de estopa e dormiam, com todo respeito, como faziam os animais; eram atendidos no comer e no beber pelo povo, e o referido Frei Paulo ali esteve mais assiduamente que Frei Mateus, porque Frei Mateus era mais andarilho”. Se Ludovico e os outros estavam mais por uma vida eremítica, ele era, e antes deles, mais por uma vida nômade e itinerante. Quando em 1529 realizou-se em Albacina o primeiro capítulo da nova Reforma e foram aprovadas as primeiras Constituições¹ chamadas exatamente “dos Frades da vida eremítica”, Frei Mateus foi eleito o primeiro superior geral, contra sua vontade, mas depois de poucos dias apresentou inexoravelmente a demissão.
Decidiu assim deixar os outros combaterem suas batalhas para poder ele mesmo permanecer fiel à sua vida andarilha e quase sempre solitária.
A sua aventura permanece um pouco fora das Crônicas, mais preocupadas em seguir os passos de Ludovico, empenhado como os outros, de corpo e alma, em salvar a “nova família” das tentativas de supressão. Todavia a história conserva alguns rastros do seu girovagar, mesmo um tanto coberto de lenda. Aparece em Fabriano, em Mercato Saraceno, Forli, Luigo, e por várias vezes em Veneza.
3-Um irmão incômodo?
Era conhecido em meia Itália como o pregador que gritava nas praças; “Ao inferno os pecadores, os usurários, os concubinos; mas também era conhecido como aquele que reunia crianças e lhes falava de Deus e que recebia de presente bois inteiros e campos de fava para distribuir aos pobres. Há quem diga que foi até Jerusalém em peregrinação. Quando depois entre 1536 e 1537, voltou a Roma, começou a crise. Encontrou a situação mudada: o mesmo Frei
Ludovico, após sérias lutas internas, não encontrou mais nessa reforma sua primitiva vida eremítica pela qual havia deixado a Observância. Voltava-se a preferir o trabalho manual, os estudos e a pregação culta. Frei Mateus começou encontrar-se sempre mais, em Roma, mas também em outros lugares, com frades que não condividiam com a sua itinerância; diziam-lhe que sua permissão precisava ser reconfirmada pelo novo Papa. Não era mais o seu tempo. Aquele era o tempo em que Frei Bernadino de Asti, novo superior geral, preocupava-se em apresentar um aspecto mais ordenado dessa nova “Congregação de Capuchados”. Além do mais preocupava o fato de que, nesses tempos de Lutero, Mateus tivesse começado a mandar ao inferno também Bispos e Cardeais, por serem depredadores dos bens dos pobres. Por outra parte, o Padre Geral dos Observantes fazia de tudo para atrair as simpatias daqueles frades capuchinhos que se achavam desiludidos com as últimas controvérsias de família. Assim foi que, talvez também por outros motivos, Frei Mateus voltou para os Observantes. Intuíra, (Ter-lhe-iam prometido formalmente?) que assim ser-lhe-ia mais fácil continuar sua itinerância: tirou o capuz e sem mais modificações no hábito “pobrezinho”, continuou a girovagar até a morte, por outros tantos quinze anos. Há quem diga que, por vontade do Papa, teria sido “capelão militar”, acompanhando as tropas imperiais, nas guerras contra os Huguenotes1
Protestantes, calvinistas franceses que formaram um partido político religioso (obs.do tradutor)
. Nos últimos anos sabemos que estava em Veneza, dormia nas torres e debaixo das pontes. Foi afastado, pelo menos uma vez, pelas autoridades da Sereníssima2 e confinado em Chioggia, porque durante os processos girava com uma vela na mão, dizendo que estava procurando a justiça.
4-Conclusão
Ao final destas breves “pistas” para uma biografia de Frei Mateus de Bacio, brota espontaneamente uma pergunta: Qual é o lugar de Frei Mateus dentro do movimento de hoje, numa época de reformas e contra reformas?
Afinal, ninguém mais o chama de “fundador” da reforma capuchinha, até porque este título com maior direito, pertence a Ludovico de Fossombrone assim como o de “organizador” compete a Frei Bernadino de Asti. Mateus poderia ser reconhecido mais no lugar de “iniciador” ainda que “involuntário”, que porém fez brilhar um aspecto fundamental e esquecido do Franciscanismo: a itinerância absoluta! Ele permaneceu como um irmão original e solitário no franciscanismo e na Igreja, com uma riqueza de mensagens que o Movimento Franciscano não deveria deixar cair no esquecimento.
Mateus de fato está próximo somente a figuras como Francisco e José Bento Labre e representa uma daquelas aproximações, excepcionais para a Igreja Católica Ocidental, da categoria russo-ortodoxa dos “JURODIVYE”, (os “pazzi christi” = “loucos de Cristo”) e dos monges itinerantes presentes em todas as grandes religiões. Sua vida oferece afinal um engate para uma última consideração: propô-lo como “Santo Interobediencial”, como figura emblemática, uma reaproximação possível de uma “fusão” das Ordens masculinas franciscanas: conventuais, observantes, capuchinhos e reformados.
Sua experiência pode de fato apresentar cabe a historiadores melhores a confirmação a superação da “reforma como divisão”, e a confirmação da diversidade como riqueza para todos. A conhecida incapacidade da instituição de sentir a pluriformidade como um dom, e a tentação do indivíduo em sentir a obediência como um freio, são duas faces da mesma moeda e a sombra do mesmo limite presente em toda a reforma nascida como divisão.
A experiência de Mateus, de Ludovico e de todos os outros que, vindo da Observância, entraram nos Capuchinhos, mas também a experiência da mesma Observância, permanecem marcadas por essas ambigüidades que voltam cada vez que, da necessidade pessoal de viver a Regra à letra, se passa ao desejo de reforma coletiva; por “amor à Ordem” arrisca-se a perder aquela autenticidade singular que marcara os inícios. Parece que Mateus, tenha esse limite menos que os outros, e o seu retorno à Observância pode ser a confirmação dessa afirmação:
... e Pedro, Franco, Gerard, Pierre, Jean Marie, e outros, “barbudos” ou “caminheiros” que encontro na caminhada fazem-me pensar que a itinerância de Mateus não seja uma categoria ultrapassada. E quando Gino me perguntou o que eu acho da sua idéia de fundar uma Ordem Ecumênica de monges itinerantes, gostaria de responder-lhe: “Fica capuchinho!”
Perdão: “Fica franciscano!”
Flávio Gianessi, Fra Matteo da Bascio, spunti per una biografia, L´Italia Francescana, 62, 1987, n. 4-5, p 509-514
Tradução: Frei Odair Verussa.