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Legenda dos Três Companheiros - Introdução

1. O livro que conhecemos

Um dos documentos biográficos mais importantes sobre São Francisco chama-se Legenda dos Três Companheiros. Recebeu esse nome porque os manuscritos conhecidos começam com uma Carta escrita em Grécio aos 11 de agosto de 1246 e dirigida ao Ministro Geral apresentando as notas biográficas de Francisco dadas por três de seus primeiros companheiros: Frei Leão, Frei Rufino e Frei Ângelo. 

Mas a própria Carta parece mostrar que a biografia que a segue não é dos companheiros de Francisco, pois diz:
"Não vamos escrever estas coisas como uma legenda... Antes, como se estivéssemos em um agradável jardim, escolhemos algumas flores que nos pareceram mais bonitas, sem seguir o fio da história e deixamos de propósito muitas coisas que já estão escritas nas referidas legendas...".

Fica claro que os "três companheiros" apresentaram um florilégio, isto é, um conjunto de casos mais ou menos agrupados por temas. Para explicar como a carta foi parar no começo da Legenda que conhecemos como "dos Três Companheiros", foram levantadas as mais variadas hipóteses. Vamos falar disso mais adiante. 
O importante é que temos em mãos um precioso documento, certamente nascido no sec. XIII, com uma vida de São Francisco pedagogicamente muito bem elaborada, que apresenta o processo de santificação de Francisco e também o processo de evolução da Ordem dentro da Igreja. Colocamos, adiante, um quadro com o desenvolvimento geral para dar uma visão de conjunto. 

Quadro Geral da LTC 
A). Antes da conversão: (2-4) predições sobre o futuro de Francisco. 
B). O processo de conversão (5-21) 
1. Duas visões com armas: "O Senhor ou o servo?" (5-6). 
2. Francisco é transformado pela graça de Deus (7-10). 
3. Francisco se fortalece na oração (11-15). 
4. Francisco se decide (16-20). 
5. Francisco faz-se um mendigo (21-24). 
C). O começo da fraternidade (24-45) 
1. De eremita a pregador (25-26) 
2. Os primeiros seguidores (27-32) 
3. Primeiras missões, mais irmãos (32-41) 
4. O modo de ser dos irmãos (42-45) 
D). O papa Inocêncio aprova sua proposta de vida (46-54) (seção eclesial I) 
1. A decisão de todos (46) 
2. Bons contatos, e a provação do Papa (47-53) 
3. Francisco pregador (54) 
E). A Porciúncula: foco de relacionamento com a Igreja (55-67) (seção eclesial II) 
1. De Rivo Torto para a Porciúncula (55-56) 
2. A Porciúncula: fonte de luz para todo o mundo 
3. O cardeal protetor, elo entre a Igreja e a Ordem, visitava todos os anos a Porciúncula (61-67) 
F). A morte de Francisco: sinal de seu amor a Jesus Crucificado (68-70) 
G). A canonização de Francisco em Assis 
(71-73) 


2. História da LTC 
Legenda dos Três Companheiros já era conhecida por L. Wadding, quando escreveu os Annales Minorum, no sec. XVII. 
A primeira edição impressa, foi feita em 1798 pelo bolandista C. Suyskens, que lhe deu o título de "Apêndice inédito à Vida Primeira, elaborado por três companheiros do próprio São Francisco". Era a transcrição de um códice dos franciscanos recoletos de Lovaina. Desde essa data, a LTC com a carta introdutória foram consideradas fontes autênticas. 
No sec. XIX prosperaram edições baseadas no cod. Vaticano 7339 e numa vulgarização italiana transcrita em 1577 pelo oratoriano Muzio Achillei. 
O cod. 7339 tem um enorme acréscimo no começo (em relação ao texto que conhecemos hoje). Foi publicado a primeira vez em 1831 por Frei Estêvão Rinaldi e uma segunda vez em 1880 por L. Amoni. A vulgarização italiana, por sua vez, tem um grande acréscimo no final. No fim do sec. XIX havia três publicações: Suyskens, a vulgarização italiana e Rinaldi-Amoni. 
No começo de seus estudos, Sabatier dizia que a LTC era o melhor texto sobre São Francisco, embora acreditasse que as autoridades da Ordem tinham mutilado o texto. Depois que achou o Espelho de Perfeição,deixou um pouco de lado a LTC. Acreditava que a Legenda dos Três Companheiros fora escrita em 1246 e oEspelho da Perfeição em 1227. 
Em 1898, Faloci Pulignani editou um códice que estava com os capuchinhos de Foligno (agora na cúria provincial). Em 1917, F. Delorme publicou o texto do Friburgense 23 J 60 (só trechos). 
Baseados na idéia de Sabatier, de que o texto do bolandistas e o italiano eram anteriores a uma parte dos cortes feitos pelas autoridades, Marcelino de Civezza e T. Menichelli publicaram em 1899 uma edição que tentava recuperar o texto íntegro que, para eles, era fundamentalmente o italiano. Refizeram um texto latino usando o Espelho de Perfeição. Saiu uma tradução desse trabalho pela Vozes em 1954. 
Em 1900, o bolandista Van Ortroy sus-tentou que o texto da LTC dos bolandis-tas era íntegro e por isso não tinham cabimento nem as dúvidas de Sabatier nem a edição Civezza-Menichelli. Mas disse que, embora íntegro, o texto não era autêntico: era obra de algum hábil autor posterior, que se fez passar pelos primeiros discípulos.
Salvatore Minocchi separou a carta da LTC e disse que o texto que acompanhou a carta era uma primeira versão do Espelho de Perfeição. Para ele, o texto que conhecemos como LTC era o Quasi stella matutina de João de Ceprano (ou Celano), que acham que está perdido. Argumentava que um prólogo reproduzido pelo códice Vaticano 7339 começava assim: "Praefulgidus ut lucifer et quasi stella matutina...". Depois disso, vários autores tentaram fazer recomposições, especialmente na base da Compilação de Assis (Legenda Perusina). 
Em 1939, J. Abate publicou o Códice de Sarnano (E60 da biblioteca dessa cidade), tido como mais antigo, pois pode datar do fim do sec. XIII ou começo do XIV. Para Abate, a LTC não poderia ser colocada antes dos anos 70 do sec. XIII, porque depende até da Legenda Maior. 
Depois disso, tanto Desbonnets (1972) quanto Sofrônio Clasen acabaram defendendo que uma primeira versão da LTC é mesmo de 1246, na base de com-parações com os outros escritos. Mas para Lorenzo de Fonzo, a LTC buscou seu material no Florilégio dos companheiros e no Anônimo Perusino. Para Pierre Beguin, a LTC não representa a totalidade do material enviado pelos Companheiros, nem é uma parte dele, mas foi escrita antes da Vida II de Celano, e aproveitando o Anônimo Perusino. 
Para Desbonnets, a Carta dos Companheiros enviou junto com as "Flores" as primeiras versões do que conhecemos hoje como Compilação de Assis Anônimo Perusino. 
Em 1980, Raoul Manselli sugeriu que se desse à LTC o nome de “Legenda de Assis” pois dá muita atenção a detalhes de Assis, fazendo 34 referências à cidade. 
3. O Autor da LTC 
Como o livro que estamos apresentando é uma verdadeira Legenda, que narra em ordem a vida de Francisco, não deve ter sido escrito pelos três companheiros do santo que escreveram a Carta de Grécio. 
Além disso, o autor não parece ser um frade retirado em um eremitério, como era Grécio. Tem acesso a livros que de-viam ser raros e redige como um escrivão público. E parece estar vivendo em Assis, pelas observações constantes que faz sobre a cidade. Aliás, morando em Assis e escrevendo como um profissional da caneta, provavelmente foi um frade do Sacro Convento, com acesso à biblioteca que, provavelmente, era a melhor da Ordem. 
Por tudo isso, não é sem cabimento a suposição de Minochi de que o autor fosse João de Ceprano ou de Celano. Mas não dá para provar nada. 
Na realidade, o autor juntou material recolhido da Primeira Vida de Celano, da Biografia escrita por Juliano de Spira e do Anônimo Perusino (quase a metade da LTC é formada por 96% do AP), acrescentando pouca coisa de próprio, por exemplo, nos números 9-10 e 14-15. 
Mas o autor da LTC foi alguém muito capacitado, que deu outra alma a seu livro, apresentando um São Francisco muito mais místico que o do Anônimo Perusino. 
4. Indicações cronológicas 
Há alguns elementos que nos ajudam a situar a LTC no tempo. Como ela junta ao nome de Gregório IX um "de saudosa memória" (24) e diz que ele foi benfeitor e defensor dos irmãos "até o fim de sua vida" (67), deve ter sido escrita depois de 22 de agosto de 1241, quando esse papa morreu. Para comparar, o Anônimo Perusinochama Gregório IX de "o venerável senhor e pai" (47) e só diz que foi eleito papa (45). Semelhantemente, o AP apresenta Frei Bernardo de Quintavalle sempre como vivo (10, 11, 12, 14, 21, 31), enquanto a LTC diz que ele era de "santa recordação" (27 e 39). Sabemos que Bernardo morreu entre 1241 e 1246. 
Por outro lado, se, como sustentam alguns estudiosos, a LTC serviu de fonte para a Segunda Vida de Celano depois de pronta e não quando ainda tinha apenas a forma de "flores" dos companheiros, tem que ter sido escrita até 1246, porque a 2Cel saiu em 1247. 
Também é interessante aproveitar as indicações cronológicas que estão dentro do texto da Legenda: 
No n. 27: "transcorridos dois anos de sua conversão... certos homens... uniram-se a eles". 
No n. 62: "Onze anos haviam decorrido desde o início da Ordem... foram escolhidos ministros". 
No 66: “No capítulo seguinte (depois na Regra bulada) Francisco concedeu licença aos ministros para receberem frades...". 
No 68: "Vinte anos após... (1226) apresentou-se diante do Senhor". 
No 69: "...dois anos antes de sua morte... lhe apareceu um serafim". 
No 71: Foi canonizado "no ano do Senhor de 1228...". 
No 72: "Dois anos após a canonização... o corpo foi trasladado". 
5. Indicações ambientais – Assis 
A nossa Legenda faz contínuas referências a Assis, a seus cidadãos e aos seus arredores, sem falar nas referências à Porciúncula. Em geral, coloca numa luz favorável os conterrâneos de Francisco. 
6. Circunstâncias históricas 
O autor do livro que conhecemos como Legenda dos Três Companheiros parece não tomar conhecimento dos fatos históricos que sacudiam a Ordem e a Igreja no seu tempo. Mas não podemos pensar que fosse imune ao que se passava e, se de fato cremos que o livro foi escrito por volta de 1246, é interessante recordar alguns dos principais fatos do tempo. 
Em 1240, o Papa e o Imperador estavam em guerra. As tropas imperiais assediaram Assis. Nessa ocasião, entraram os sarracenos em São Damião. Em 1241, voltaram a cercar Rieti e Assis. Nesse ano, deve ter morrido Frei Bernardo de Quintavalle, no Sacro Convento de Assis. 
Em 1243, sendo ministro geral Haimo de Faversham, a Ordem estabeleceu normas litúrgicas. Posteriormente foram publicados um missal e um breviário franciscanos que serviram de modelo para toda a Igreja. Foi em junho desse ano que, após uma vacância de dois anos, foi eleito papa o cardeal Sinibaldo Fieschi, com o nome de Inocêncio IV. - É provável que João Fidanza tenha entrado na Ordem nesse ano, em Paris, tomando o nome de Frei Boaventura. 
Em 1244, com a morte de Haymo de Faversham, o capítulo elegeu como geral Frei Crescêncio de Iesi, que mandou recolher tudo que os frades sabiam sobre Sào Francisco. No fim desse ano, fugindo do imperador, o Papa se refugiou em Lião, na França. 
Em 1245, Inocêncio IV convocou um concílio para condenar o imperador. Também impôs aos frades que assumissem a responsabilidade por todos os mosteiros das clarissas. Em novembro, escreveu a bula "Ordinem vestrum", em que a Santa Sé assume como seus todos os bens usados pelos frades, e lhes permite que tenham não só o necessário mas também o que for cômodo. 
Em 1246, Frederico II atacou todos os que apoiavam o Papa, inclusive os frades. Muitos foram mortos ou, pelo menos, expulsos ou encarcerados. No dia 11 de agosto, Frei Leão, Frei Rufino e Frei Ângelo escreveram em Grécio a carta com que apresentaram ao ministro geral tudo que puderam recolher sobre São Francisco: as "flores" que foram passadas para Celano e talvez o Anônimo Perusino e a Compilação de Assis (Legenda Perusina). 
Em 1247, o capítulo geral de Lião (13 de junho) elegeu Frei João de Parma co-mo ministro geral. Ficaria até 1257. Em agosto, o Papa emite outra bula, a "Quanto studiosius" a respeito da pobreza dos franciscanos: institui os "síndicos apostólicos", encarregados de agir em nome do papa para atender às necessidades dos frades. O geral rejeita a bula. Mas Inocêncio IV também escreve uma nova regra para as clarissas, em que acaba com a sua isenção da propriedade. É o que vai acabar levando Clara a fazer a sua Regra. Assis e Perusa estão em guerra com as tropas do imperador. 
7. Francisco místico na LTC 
Na Legenda dos Três Companheiros, Francisco já aparece como um santo desde o começo: antes da conversão já punha remendos ordinários em trajes de fazenda caríssima (2), e já achava que ia ser um santo venerado (4). Foi visitado pelo Senhor quando ainda pensava em ser militar (5) e teve êxtases passeando com os companheiros na noite de Assis (7). 
Subtraía-se do mundo para guardar Jesus Cristo em seu interior (8). Começou a ter a experiência dos leprosos (11) num dia em que estava "a orar com mais fervor". 
Nessa perspectiva estão a oração numa caverna e em outros lugares afastados (12), o encontro com o Crucificado em São Damião (13), e todo seu amor pela paixão de Jesus (14-15). 
Seu confronto com o pai (17-19) acon-tece dentro de um profundo espírito religioso, e sua pobreza está intimamente ligada à experiência de Deus (22 e 24). 
São experiências místicas sua missão evangélica (25), seu encontro com o Papa me Roma (51), como também a visão da árvore (53), a da Porciúncula como centro de luz (56), e mesmo os seus sonhos como o da galinha choca (63). A morte (68) e os estigmas (69-70) são o coroamento de sua experiência mística. 
8. A experiência da Igreja 
Nosso quadro mostra que há um verdadeiro esquema sobre a Igreja, do número 46 ao 67. 
Todo o conjunto mostra muito bem porque Francisco escreveu em sua Saudação à Mãe de Deus: "Salve, Virgem feita Igreja!". Isso é demonstrado especialmente quando se fala dos capítulos gerais e, de uma maneira destacada quando se apresenta o papel da Porciúncula. 
Nada substitui uma boa leitura do texto, mas chamamos a atenção para o n. 46, quando Francisco diz: "Vamos, pois, à nossa Mãe a Santa Igreja Romana..." e para o n. 56, quando se apresenta a visão que um frade teve: "todos os homens deste mundo estavam cegos e ajoelhados em torno de Santa Maria da Porciúncula...", o lugar "predileto da Virgem gloriosa, entre todos os lugares e igrejas deste mundo". 
Como conclusão, o cardeal protetor - elo de comunhão com a Igreja - assistia aos capítulos todos os anos. 
9. Uma conclusão 
Se os famosos três companheiros mandaram ao ministro geral as suas "flores" e mais os textos que nos deram o Anônimo Perusino e a Compilação de Assis (Legenda Perusina), é porque esses escritos, não oficiais, só tinham cópias particulares, quando alguém se interessava por eles. 
É diferente o caso das Legendas de Celano, copiadas por ordem da Santa Sé ou da Ordem e presentes praticamente em todos os conventos, ou também o da Legenda Maior, que já foi apresentada com 43 exemplares justamente destinados à multiplicação. 
Por isso se compreende como esse tipo de escrito teve uma história difícil de ser recuperada e com uma abundância de variantes. O estudo dos próximos livros nos ajudará a entender melhor toda essa complicada questão editorial. 
A LTC tem 18 capítulos e 73 parágrafos numerados. Dividimos o tema pelos parágrafos, sem levar em consideração os capítulos com seus títulos.