TEXTO ORIGINAL
XV- De mortificatione carnis.
Non servat sibi Clara modum, nec mollia querens
Comuni vult lege frui. Nimis aspera temptat.
Horrida sunt actu, que sunt miranda relatu.
Non facit ad votum, nimium leve forte putabat
Clara togam portare rudi de vellere testam,
Seu de mantello vili; sibi stringere pectus
Sub corio porci languet, nimis yspida cuius
Connubit carni fragili tonsura pilorum.
Hanc quoque dilacerat de villis vestis equinis
Nodis conserta, rigido sibi fune reducta.
Conqueritur miseranda caro peccasse parentes,
Quorum posteritas vitiate traduce carnis
Lubrica fit, concreta malis, obnoxia culpis,
Nolens addicta penis et dedita morti.
Nuda sibi fit lectus humus, quandoque recisa
Lectus erant sarmenta sibi, sub vertice lingnum
E[s]t sibi pulvinar. Storio quandoque iacebat,
Substernens capiti modicum palee, quasi plumam.
At quia tam dura vix ultra ferre valebat
Attritum corpus, Franciscus mitius egit,
Mandans ut pleno paleis fiscone quiescat.
Non servat metam seu ritum ieiuniorum,
Quem tenet ordo sacer devote religionis.
Huic cibus est panis, aqua potus quolibet anno
In quadragenis binis, quibus ipsa secundo
Et quarto sextoque die cessabat ab esu,
Vinum percipiens Domini quandoque diebus.
Set quia nimirum post tempora longa sub ista
Vita, seu morte potius, marcescere cepit,
Vir sanctus Presulque loci iussere, quod huius
Regula ieiunii triduani pernitiosa
Exulet, et quod nulla dies pertranseat, in qua
Non modico panis corpus regat attenuatum.
Virginis hinc artem videas, qua pondera carnis
Exuit et cogit spirantia monstra silere.
Cum caro nostra modum senper transire laboret,
Non sibi iam servare modum lex equa requirit;
Namque dolum pulsare dolo, propellere vim vi
Et fraudi cum fraude viam concludere, lex est.
Non grave ieiunium, non observantia talis
Efficit hanc mestam; vultus pretendit amenos,
Iocundos, ylares senper; carnisque flagella
Cordis amor levigat. Feivet dulcedine Sponsi.
Dum recolit, dolet et plorat ludibria Christi,
Sputa, flagella, minas, colaphos, cruciamina seva,
Celorum Dominum pro servis in cruce tensum,
Confixum clavis, lacrimosa morte peremptum;
Dumque gemit sanctos pro Christi nomine passos,
Verbera carnificum, suspendia, vincla, flagella,
Ardentes laminas, gladios, incendia, mortes,
Multos pro Christo cesos, pro cuius amore
Non lapides Stephanus metuit, Laurentius ignes
Derisit, vincens Vince[n]tius aspera vicit:
Dum recolit seva teneris illata puellis,
In quibus Agnetis constans infantia frangi
Non potuit, non omnino Lucia movetur;
Leniter exequitur [gravia?], ieiunia carnis
Sponte subit, cunctosque suos pia gesta labores
Dulcorant, exempla levant, comitiva remulcet,
Plurima confortant suffragia, premia firmant.
TEXTO TRADUZIDO
XV - A mortificação da carne.
Clara não queria privilégios para si mesma, pois não procurava o que era mais mole e queria observar a lei comum. Tentava coisas demasiado ásperas, coisas que são maravilhosas para contar mas horrorosas para viver. Não o fazia pelo voto. Talvez lhe parecesse muito leve.
Clara usava um vestido tecido com pelos rudes, ou um manto vil. Padecia apertando o peito sob um couro de porco, juntando a carne frágil, com o corte muito áspero dos pelos. Dilacerava-a também com roupas vis feitas com crina de cavalo ajuntada em nós, apertando-se com um laço rude. A miseranda carne lamentava-se porque nossos pais pecaram e sua posteridade, herdeira da carne viciada, tornou-se lúbrica, feita de males, carregada de culpas, condenada sem querer às penas e entregue à morte.
Fez da terra nua o seu leito. Às vezes, sua cama eram sarmentos cortados, e sob a cabeça punha um lenho como travesseiro. Às vezes, deitava-se numa esteira, pondo sob a cabeça um pouco de palha, como se fossem penas.
Entretanto, como o corpo já sofrido mal pudesse continuar a suportar coisas tão duras, Francisco agiu com mansidão maior, mandando que repousasse num colchão cheio de palha.
Não observava a meta ou rito do jejum que era imposta pela Ordem sagrada da devota religião. Sua comida era pão e sua bebida era água todo o ano. Em duas quaresmas, nas segundas, quartas e sextas-feiras, ficava sem comer nada, tomando vinho, às vezes, nos domingos.
Mas, certamente porque depois de um longo tempo levando essa vida (ou antes, essa morte), começou a definhar, o homem santo e o bispo mandaram que acabasse com essa regra perniciosa de jejum nos três dias, e que não passasse nenhum dia em que não mantivesse o corpo atenuado com um pouquinho de pão.
Isto é para que vejas aqui de que modo a virgem despiu o peso da carne e obrigou a calarem-se os monstros que respiravam. Como a nossa carne busca sempre um jeito de escapar, uma lei justa requer que já não se observe esse jeito.
Porque a lei é bater o dolo com o dolo, empurrar a força com a força, e fechar o caminho da fraude com a fraude. Nem o pesado jejum nem toda essa observância deixavam-na triste. Mostrava sempre um semblante sereno, agradável, alegre. O amor do coração suavizava os flagelos da carne. Ardia pela doçura do Esposo.
Quando recordava, sofria e chorava pelos escárnios de Cristo, as cuspidas, chicotadas, ameaças, tapas, os cruéis tormentos, o Senhor dos céus estendido na cruz pelos servos, pregado com cravos, acabado numa morte lacrimosa.
E, enquanto gemia pelos santos que padeceram em nome de Cristo, as pancadas dos algozes, as suspensões, as amarras, os chicotes, as lâminas ardentes, as espadas, os incêndios, as mortes, muitos que foram derrubados por causa de Cristo, por cujo amor Estêvão não teve medo das pedras, Lourenço riu-se do fogo, Vicente venceu a aspereza. Enquanto recordava as sevícias feitas a jovens meninas, em que não se conseguiu quebrar a infância constante de Inês, Luzia não pôde ser absolutamente demovida, foi suportando coisas graves com leveza, assumiu espontaneamente os jejuns da carne, os gestos piedosos abrandaram todos os seus trabalhos, os exemplos arrastaram, a companhia afagou, os sufrágios sem conta confortaram e os prêmios confirmaram.